Janela da Alma

Um debate fenomenológico a partir do filme “Janela da Alma” (texto apresentado no 1º Cine-debate da Faculdade Social da Bahia, em maio de 2008)

Janela da Alma, documentário brasileiro dirigido por João Jardim e Walter Carvalho, lançado em 2001, é um filme belo e suscitador de reflexões de grande valia ao campo das Ciências Humanas, em especial, à Psicologia.

Trata-se de uma obra de arte que, de modo original e poético, produz insights e inquietações acerca de questões fundamentais da condição humana, como a Percepção e o Olhar. Para isso, os diretores se servem de uma cuidadosa edição e composição das imagens, assim como de uma primorosa trilha sonora. A seleção e o arranjo dos depoimentos são feitos de modo a ampliar e aprofundar progressivamente a exploração da temática.

Janela da Alma também pode ser visto como um exemplo de pesquisa de cunho fenomenológico, com resultado estético. A começar pelo tema escolhido, tão caro à Fenomenologia, qual seja, o da “Percepção”. Também pelo gênero: não é um filme de ficção, mas um documentário. Nele, os cineastas e sua equipe conseguem estabelecer com os depoentes, uma atmosfera de confiança e troca de experiências, rica em elementos biográficos e espontaneidade.

As variações da questão de fundo, sobre os diferentes modos de olhar e perceber a realidade, mesmo não sendo explicitadas ao expectador a cada novo trecho de depoimento apresentado, vão sendo subentendidas pouco a pouco, também porque aparecem legendas que contextualizam a condição a partir da qual se constitui o olhar do entrevistado.

Nota-se, portanto, na escolha dos diretores, um pressuposto básico da Fenomenologia: não há como examinar a Percepção, sem considerar que, além das características próprias às coisas percebidas, o fenômeno perceptivo depende também do percebedor. Para compor uma amostra qualitativamente relevante, João Jardim e Walter Carvalho escolhem 19 sujeitos, adotando variáveis ligadas à idade (em geral são pessoas adultas); à acuidade visual (há pessoas com cegueira total, parcial, miopia, astigmatismo, estrabismo e com visão dita normal); à nacionalidade (são provenientes de países diferentes, como: Brasil, Portugal, Alemanha, Rússia, Canadá, Estados Unidos, etc.), à atribuição de sabedoria socialmente reconhecida (há artistas, intelectuais e “pessoas comuns”).

Suponho que algumas perguntas orientaram os cineastas ao longo da produção do filme. Por exemplo:

  1. Como você vê as coisas?
  2. Você se lembra como se deu conta de que via as coisas de um modo diferente dos outros?
  3. Você pode “ver” sem usar os olhos?
  4. Como você faz para reconhecer as pessoas, transitar pelos espaços, trabalhar, amar, etc.? E antes, como era?
  5. Você imagina como é visto pelos outros? Como te afeta o olhar dos outros sobre você?
  6. Você se lembra de situações em que passou a ver uma situação de um modo diferente?
  7. Como é ter que usar óculos / lentes? O que se modifica na sua percepção das coisas, e de si mesmo, quando os tira?
  8. Você acha que enxerga demais ou de menos? Qual seria a boa medida para a sua visão?
  9. Pelo fato de sua visão ser considerada deficiente e, pelo fato de haver uma série de dificuldades de inserção e circulação social para pessoas com dificuldades de enxergar, como você se sente?Você se lembra de situações em que tenha sido surpreendido por uma percepção diferente das coisas?

Perguntas como essas podem ter sido elaboradas previamente pelos cineastas ou ter surgido no decorrer dos encontros, operando de modo mais ou menos consciente, como um pano de fundo sobre o qual foram tecidas as narrativas e edições. Por isso as legendas ajudam. Elas oferecem dados de contextualização que nos permitem vislumbrar algo do ponto de vista dos entrevistados.
De todo modo, a inspiração fenomenológica faz-se notar na disponibilidade dos cineastas para serem afetados por aquilo que vai se revelando ao longo dos depoimentos. Com a câmera em punho, fazem manobras visuais harmonizadas com a trilha sonora, exploram diferentes recortes e possibilidades de olhar, focam e desfocam campos perceptuais, colocando-se no lugar daqueles a quem escutam, e assim, experimentam diferentes formas de dar sentido à realidade. Assim, alteram também a percepção do espectador.

Tal atitude recupera a epoché, espécie de método proposto pela fenomenologia husserliana, em que se busca colocar a certeza sobre as coisas “entre parênteses”, para então se poder examiná-las, com menos preconceitos e com maior abertura ao que se nos apresenta.

João Jardim e Walter Carvalho escolheram investigar um tema bastante explorado pelas neurociências, pela medicina, psicologia, psicanálise, artes, literatura, música, etc. Sobre o Olhar e a Percepção, circulam também, no senso comum, uma série de teorias e idéias estereotipadas. Mas, se suponho que os diretores de Janela da Alma lograram êxito em realizar algo semelhante à epoché fenomenológica, é porque, mesmo tendo escolhido um tema aparentemente abstrato e deveras comentado, a abertura dada por eles às expressões relativas à percepção dos depoentes – percepção do mundo, dos outros e de si mesmos – acabou desvelando uma riqueza de experiências vividas no âmbito da corporeidade, que foram narradas e significadas a partir de visões de mundo e condições existenciais muito específicas.

E precisamente dessas especificidades, os autores reuniram elementos para uma reflexão filosófica mais ampla e universal, sem se deixarem levar por estereótipos ou informações prévias. Claro que parte desses estereótipos são retomados e problematizados ao longo da película, mas isso acontece no fluxo mesmo das narrativas, e não porque os diretores asssim forjaram.

Dispostos a sustentarem a aparição de aspectos paradoxalmente singulares e universais constitutivos da percepção humana, João Jardim e Walter Carvalho apresentam-nos uma gama de possibilidades de olhar o mundo que transcendem teorias e discursos prontos. Ao darem voz e visibilidade a sujeitos que percebem diferentemente o mundo e a si mesmos, sob condições variadas, abre-se ao expectador um horizonte de significações que, no mínimo, farão com que ele hesite antes de fazer discursos que simplifiquem, reduzam ou naturalizem concepções sobre a realidade como algo fechado, pronto e independente dos homens.

Nesse mesmo sentido aponta a opinião do jornalista Sérgio Conti, da Folha de São Paulo on line, ao afirmar que a tese central do filme é a de que “a visão é uma construção cultural, e não um dado da natureza”.

comentários
  1. tarcizio disse:

    É bom ter uma janela aberta para olha todos os horizontes ,Abra sua janela abra sua alma.

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